quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Lua manchada de sangue




Carregava nos olhos um ar de tristeza, mas na verdade o que sentia era solidão. Nascera sozinha e solitária continuava vagando pela Terra por mais de uma eternidade. E a beleza das coisas tristes e suaves acompanhava seus gestos. Sua caminhada era lenta e longa, porém incansável. Havia no seu sorriso uma doçura incomparável, e ao mesmo tempo, a crueldade pairava no seu olhar frio. Seu espírito estava muito bem guardado nas profundezas inacessíveis do seu interior, mas a força que emanava dele gerava nela uma energia que atraía outros espíritos. Ela era feita de carne, magia e solidão.
            Era essa solidão densa que fazia com que ela vagasse sem parar pelo mundo e suas eras. Gostava de passear pelas florestas à noite, desprovida de roupas, com os longos cabelos a lhe cobrir o corpo. Não mostrava os cabelos para ninguém. Prendia-os bem junto à cabeça em tranças enroladas elegantemente, de modo que ninguém poderia conhecer seu verdadeiro comprimento. Por vezes usava também lenços coloridos para encobri-lo.
            Mas quando a noite tomava a terra, ela se aproximava das florestas, e, certa de estar só, pedia licença e adentrava a densidade verde escuro e negra, com o corpo nu e os cabelos muito compridos soltos. E, livre, corria graciosamente até o amanhecer, relembrando a bela guerreira que na verdade era. Às vezes seu refúgio eram as praias desertas. Entregava-se nua ao mar e à luz da lua, sentindo na sua pele as eras guardadas nas águas salgadas e nas rochas.
            Seu nome era impronunciável, por isso escolhera chamar-se Eveline, para apresentar-se ao mundo. E com esse nome atravessava as eternidades, vencendo os homens e a Morte. Do muito que vivera, apenas a solidão inquebrantável lhe pesava na alma. Não ficara nomes, não ficara amigos, tampouco amores; apenas aquele vazio que ela sabia que não seria nunca saciado, e por isso, ela cumpria sua missão e se satisfazia em existir até o dia em que lhe seria concedido o descanso.
            Eveline tivera um único amor em toda a sua longa vida de anos arrastados por suas pernas fortes. E isso fora há muitas eras distantes, na época em que a Lua descia à terra para enfeitiçar os homens com seu brilho. Ela os levava consigo, para que a amassem absolutamente até o dia de suas mortes. Os homens que se apaixonavam por ela e se deixavam levar, amavam-na por uma noite inteira e adormeciam para sempre quando o sol nascia e a escuridão da noite terminava.
            Eveline era feliz com Áquis, até o dia em que ele escreveu versos para a Lua, que desceu à terra e encheu os olhos dele com o brilho magistral do seu olhar. Ele se apaixonou por aquela mulher branca de cabelos negros e, embora Eveline se esforçasse por recuperar seu amor, dando-lhe atenção e toda a sua beleza, ele preferia o amor da Lua, porque ela possuía o olhar de mil belas mulheres. Quando ela lhe convidou para que fosse somente dela, ele deu-lhe a mão e não foi mais visto na Terra.
            A Lua gostava de testar a fidelidade dos homens e por esse motivo escolhia homens que viviam felizes com suas mulheres. E, quando estes sucumbiam ao desejo e à traição, ela os deixava morrer.
            Na manhã seguinte, quando o corpo de Áquis surgiu sem vida na areia de uma praia, o peito de Eveline parou de sangrar. Suas vestes brancas, diáfanas, estavam completamente vermelhas, manchadas pelo seu sangue que escorreu da ferida de sua alma durante toda a noite em que seu amado estivera com outra mulher.
            Ela levantou-se de sua prostração e começou a vagar pelo mundo. Seus pés não se cansavam nem se feriam e sua beleza não arrefecia. No lugar da sua alma fluida como um rio puro, brotou uma árvore de raízes profundas e ressecadas.
            Houve muitos homens que se apaixonaram por Eveline. Ela permitia que se aproximassem, sondava-lhes a alma e se fossem bem intencionados, se existisse pureza nos seus sentimentos, ela se afastava deles. Nunca se aproximava de mulheres, ainda que possuíssem boa índole.
            Certa vez estava passando por uma cidade e saiu à procura de algum lugar deserto para poder caminhar livremente. Disseram-lhe que havia uma ilha onde morava apenas uma senhora e seus cachorros. Eveline pagou um barqueiro e desembarcou no lugar para passar a noite. Assim que chegou, avistou uma casinha de madeira e os cachorros logo foram recebê-la. Era fim de tarde ainda.
            A senhora saiu à porta para ver o que alvoroçava os cachorros. Era uma negra gorda, com os anos um tanto avançados, mas se movimentava com agilidade.
            - Boa tarde! – disse Eveline – Não quero atrapalhar, só vim à procura de um lugar ermo para passar a noite. A senhora mora aqui sozinha?
            - É isso mesmo, minha filha. Essa ilha é minha, eu a comprei há muito tempo. E estou aqui cumprindo meu destino. Minha casa está aberta para os visitantes da ilha. Não tem luxo nem conforto, mas serve para passar a noite, se for preciso. Queira entrar.
            Eveline aceitou o convite. A casa possuía apenas um cômodo e um balcão servia para improvisar uma pequena cozinha. Havia redes armadas e mesas com cadeiras. A senhora lhe ofereceu água de coco e acendeu um incenso:
            - Se incomoda se eu acender?
            - Não, fique à vontade, eu gosto. Me faz pensar em coisas boas.
            A moça olhou em volta e percebeu vários frascos com folhas secas e líquidos coloridos. A velha, seguindo seu olhar curioso, cuidou em explicar:
            - Eu gosto de cultivar ervas. Essas ali são medicinais. Você tem algum mal que queira curar? Talvez eu possa ajudar...
            - Não, senhora. Os meus males não estão no corpo.
            - Eu entendo, minha filha. Mas por onde você andava esse tempo todo? Eu lhe espero há tanto tempo!
            Eveline arregalou os olhos repleta de surpresa e estranhamento:
            - A senhora deve estar me confundindo, eu nunca estive aqui antes.
            - Não, minha querida, você é que está enganada. Agora, não quero lhe prender mais. Eu sei que precisa sair e soltar esses lindos cabelos. Devem estar chegando aos seus pés! Como eu gostaria de poder vê-los! Mas não se preocupe, a ilha é segura para você e eu não vou espioná-la, não ganharia nada com isso.
            Eveline pôs imediatamente a mão nos cabelos, num gesto instintivo de proteção.
            - Quem é você? – seu olhar era assustador.
            - Não se amedronte por minha causa. Estou falando porque você veio até mim. Não havia realmente necessidade, mas eu já imaginava que você apareceria. Só não sabia que demoraria tanto. Quase você não me encontrava mais pela Terra, menina! Mas eu vou lhe dizer a verdade. Você só não será feliz se não quiser, pois essa sua caçada macabra irá terminar em breve e você estará livre. E poderá ser feliz de novo!
            - O que me entristece não é o que faço. Não me importo de ter me tornado uma caçadora. Eu preferia caçar outros tipos de alma, mas meu destino foi ficar com a parte podre. Cumpro-o resignada até o dia que tudo chegar ao fim. Mas, me diga, quando a caçada acabar, vou me alimentar de quê?
            - Isso não sei lhe dizer. Algumas coisas não são reveladas.
            - Como sabe de tudo isso?
            - Vi nas águas do mar. A nossa vida é muito irônica, minha filha. Há milênios o meu destino também foi revelado a alguém que eu não conhecia e que eu demorei muito para encontrar.
            - O que você caça?
            - Eu caço os males do corpo. Não sou tão poderosa como você. As pessoas aqui me chamam Curandeira e acham que eu as curo através das ervas medicinais. O que pensam de você?
            - Não sei. Nunca estive muito tempo em um lugar para conhecer os pensamentos das pessoas. Sou caçadora e fugitiva. A vingança é minha irmã, e eu mando na Morte.
            A noite caía densa e escura, com a lua e as estrelas como luzes. Eveline olhou para fora e a velha compreendeu que estava na hora de deixá-la ir.
            - A lua já está luzindo. Eu preciso ir.
            - Se algum dia puder, volte para me ver.
            Eveline saiu correndo, o rosto a contemplar a lua. Quando já estava longe o suficiente, tirou o vestido branco e soltou os cabelos, que lhe chegavam aos pés em ondas negras.   
            Quando aquela noite se findou, ela retornou à cidade e continuou a sua vida normalmente. Ainda vagou por muito tempo até encontrar aquilo que transformaria sua existência. Era madrugada e ela saía da casa de um homem casado cuja mulher estava viajando. Conhecera-o num bar e ele a convidou para passarem a noite juntos. Eveline aceitou, sondou sua alma e viu que não havia fidelidade em seus sentimentos. Ficou com ele até o início da madrugada. Quando saía da casa, seu vestido sempre branco, estava completamente vermelho. Ela limpava o sangue da boca quando um homem a avistou e lhe parou para perguntar se ela estava bem.
            - Estou sim, obrigada. Só preciso pegar um táxi.
            - Eu posso lhe dar uma carona, me diga onde você mora.
            Eveline pensou que caçar dois homens numa única noite poderia ser cansativo, mas resolveu entrar no carro, e, para sua surpresa, descobriu que o espírito dele era puro.
            Quando o dia amanheceu estava nos jornais a notícia de que um homem fora encontrado morto em casa, amarrado à própria cama e seu coração havia sido retirado. Sua mulher chegara de viagem repentinamente e o encontrara naquele estado tenebroso. Não havia digitais nem vestígio algum de seu assassino.
            Eveline vagava novamente pelas ruas quando o homem que conhecera na noite anterior lhe abordou:
            - Que coincidência nos encontrar de novo!
            Ela achou estranho, porque desconfiava de coincidências.
            - Você aceita tomar alguma coisa comigo? –ele perguntou educadamente.
            Ela sentiu vontade de ir com ele, porém, lembrou-se de que havia uma missão a cumprir e aquele homem não lhe ajudaria com isso. Dispensou-o educada e amavelmente. No entanto, as coincidências começaram a se repetir e ela o encontrava com muita frequência. E numa noite, ela resolveu abdicar da missão para jantar com ele.
            Tiveram uma noite agradável e quando amanheceu, ela não sentiu as dores no peito que costumava sentir quando não cumpria sua missão. E assim, quando as noites  chegavam, ela desistia da sua caçada para ficar com aquele homem que lhe mostrava amor através dos olhos. O mais estranho era que as dores não vinham ao amanhecer e ela não sentia mais necessidade de caçar.
            Foi então que se lembrou da Curandeira e percebeu que sua missão havia acabado. Estava livre e poderia amar novamente. E aquele era o homem que estava destinado para ela, para que voltasse a ser feliz e enxugasse o sangue da sua ferida aberta por tantos anos. E agora nem que ele avistasse duas luas cheias no céu ela o perderia, porque lavara com o sangue de corações ruins o próprio passado. Era aquele o homem que finalmente poderia conhecer o comprimento dos seus cabelos e assim conhecer seus espírito e apoderar-se dele.
            Sabia que o havia encontrado e passou a dedicar-se ao cultivo daquele amor, para que nunca mais fosse infeliz e solitária. Nunca mais precisaria caçar. Aguardava o dia em que poderia lhe revelar seus segredos. A única dúvida que ainda pairava sobre sua mente era sobre a sua fome, já que, deixando de caçar, não se alimentaria mais como antes. Não sabia o que usaria para se saciar quando a necessidade falasse dentro de si.
            Estavam no quarto dele. Eveline olhou-o nos olhos:
            - Preciso lhe mostrar algo. É muito importante.
            Ela se afastou dele, despiu o vestido branco e lentamente soltou as mechas dos cabelos compridos. Ele olhou-a espantado com a plenitude da sua beleza e o espírito dela, num segundo, tornou-se transparente e visível para ele, era como se pudesse tocá-lo, de tão intensa que era a sensação. Perplexo com a verdade, por algum tempo não conseguiu falar, até que as palavras retornaram aos seus lábios:
            - Você me ama, mas...
            - Sim, é isso mesmo. Eu amo você, mas eu me alimento dos corações dos homens infiéis. Foi isso o que eu fiz a minha existência inteira, depois que meu peito sangrou com a dor da traição. Sou uma caçadora, Mateus. Mas você me libertou. Agora conhece meu espírito e me tem para sempre. Você quer que eu lhe pertença agora que me conhece completamente?
            - Sim, eu quero. O seu verdadeiro nome... – ele estava como se estivesse dopado – não consigo falar... E sei tudo o que você já viveu! Vejo cada coração que arrancou dos peitos de homens e comeu! É tudo absurdamente real!
            Então, venha comigo. Preciso falar com alguém que me ajude a responder algumas perguntas.
            Ela lhe tomou pela mão e eles viajaram por alguns dias até chegar à ilha da Curandeira.
            - Só ela pode me dizer do que devo me alimentar! Não posso errar, ou meu descanso chegará em breve. E não posso perder você para a Morte!
            Quando chegaram à casinha de madeira não havia ninguém além dos cachorros. Eveline entristeceu-se subitamente, quase perdendo as esperanças de viver por mais tempo. No entanto, havia uma tábua sobre o balcão com algumas palavras riscadas: “Eu disse que partiria em breve. Mas novamente eu sabia que você viria. Deixei duas garrafas, uma é para você e a outra para ele, para que ambos não precisem mais se alimentar. Esta ilha agora é de você, cuidem dela e sejam felizes. Você não é mais uma caçadora da vingança, mas nunca deixará de ser uma guerreira. Enviarei presentes para vocês, quando chegarem”.
            Dois cavalos surgiram galopando e pararam à entrada da casinha. Eveline compreendeu que seus tempos ancestrais estavam de volta. Aquela ilha seria apenas deles dois, para sempre. Despiu as próprias roupas e montou um cavalo. Mateus fez o mesmo e a seguiu. Diz a lenda que em noite de lua cheia, o espírito de uma mulher de cabelos compridos dá a volta na ilha, nua em seu cavalo, para encontrar-se com seu amado.  E que nem mesmo a beleza de sete luas poderia separá-los.