quarta-feira, 27 de outubro de 2010

O deus do fogo


Trouxe a chama em uma noite nublada, junto com um cheiro bom. O silêncio era a sua palavra. Chegou manso e quente, e sabia sorrir. E foi sorrindo que entregou o fogo que nascia na sua boca. Era assim que costumava fazer. Era desse seu jeito que fazia os humanos se sentirem importantes. Era necessário que ele aparecesse na vida daquela mulher. Ela precisava ser importante também. Então bateu na porta dela numa noite sem estrelas. Bateu levemente, como uma visita agradável. E quando ela lhe abriu a porta, ele tomou-a pela mão sem dizer palavra, conduziu-a até o quarto, deitou-a na cama suavemente. Deitou-se por cima dela, com seu corpo morno de titã, e depositou nos lábios dela a chama da sua boca.

O beijo durou muito tempo, quase a noite toda, mas nenhum dos dois sentiu as horas passando, ele por ser divino, e ela por estar com ele. Havia uma quentura terna e aconchegante no quarto. Ela não percebeu que já estava mergulhada em êxtases orgásticos quando o dia amanheceu. Havia encontrado a plenitude e fechou os olhos.

Quando tornou a abri-los o cheiro ainda estava no quarto. E sentia uma imensa vontade de viver, mas o deus do fogo havia ido embora. Plantou nela aquele calor e a deixou. Esperou que retornasse na noite seguinte. Em vão.  Então, chorou amargamente aquela vontade de viver que ele deixara nela, aquela sensação de ser importante que ele lhe deu e lhe tirou quando não trouxe de volta seus olhos fulgurantes.

Não sabia o que fazer com todo aquele ardor que ele lhe dera de presente. Precisava viver, mas só queria viver com aquele deus que lhe invadiu a alma. E as noites passavam e ficavam cada vez mais frias, cada vez mais sem ele. Ela acendia velas por toda a casa, como num ritual de chamamento. E ele, como divindade que se preza, não lhe dava atenção.

Ela enlouquecia ao imaginar que ele passava as noites com mulheres iguais a ela. Pensava que, assim como batera em sua porta para entregar a chama, era como fazia todas as noites com as mulheres espalhadas pelo mundo. E seu espírito ardia de ciúmes, ela se debatia na cama, apagava as velas, para logo em seguida tornar a acendê-las. Tinha medo de que ele nunca mais voltasse.

Gritava. Chamava-o pela casa, da janela. Se ele era divino, lhe ouviria. E se lhe ouvia, não voltava porque não queria. O peito dela se enchia de angústia a cada dia. Ela começava a maldizê-lo e até a descrer em sua existência. Tudo o que desejava era um pouco mais daquela sensação que ele lhe proporcionara ao lhe entregar a chama e ele, deus egoísta, não realizava o seu desejo.

Decidiu esquecê-lo para sempre. Apagou todas as velas, molhou os fósforos. Arrumou um namorado. Deixou de crer em deuses.

E o deus do fogo, do telhado da casa dela, assistia a tudo sem mencionar palavra com seus olhos vermelhos. Estivera ali o tempo inteiro, mas não voltara, porque tinha medo, afinal, era a primeira vez que se apaixonava por uma humana. Tantas vezes tinha entregado a chama que não pensara que seria derrotado por uma única mulher.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

O deus que há em mim


Eu também gosto de inventar.  Mas não são inventos convencionais os meus, como quem inventa um carro, um utensílio doméstico, uma roupa ou um acessório qualquer. Eu tenho um péssimo hábito de inventar pessoas. Às vezes invento coisas, que são mais fáceis de formular. Porém, uma ou duas vezes na vida, gosto de inventar pessoas.
Elas não nascem como todo mundo nasce, sem saber de nada, precisando dos outros e de tudo para aprender a viver. Os que nascem das minhas mãos, já nascem prontos e acabados. Sabem do que gostam, do que não gostam e o que são. Não se enrolam em divagações desnecessárias. Não precisam disso, nasceram como devem ser e sua função é apenas existir.
Só que nem sempre eu acerto. Minhas mãos são meio trêmulas, às vezes faço besteiras. Então, como um deus justo consigo mesmo, desfaço os nascimentos. Desmancho-os, e isso é tudo. Deixam de existir. Não exibo minha criação medíocre.
No entanto, às vezes acontecem surpresas boas na nossa vida. Numa tarde dessas, das mais quentes, daquelas em que a preguiça impera e a única vontade é não ter vontade, saiu de minhas mãos um ser. Perfeito? Talvez não , por ser demasiado humano. Ele nasceu diferente, não saiu pronto e acabado. E eu podia ver claramente as cores da sua alma. Algo em mim me dizia que iria embora em breve, porque eu via a liberdade nos seus olhos.
Observando seus gestos mansos, sua sagacidade encantadora, convenci-me de que precisava deixá-lo viver. E ser livre. Por isso não me apoderei dele, fiz melhor: desfiz-me dele. Tomei-o pela mão quando ainda era uma criança e o abandonei num campo de flores.
- Quero que você aprenda a ser feliz. –eu lhe disse com lágrimas nos olhos. Não era fácil separar-me de minha criação, mas eu não queria ser egoísta. O mundo deveria conhecer aquela criatura admirável.
Ele me olhou com aqueles olhos cheios de ternura que lhe dei, sorriu de um jeito angelical e saiu correndo, como se me compreendesse perfeitamente. Meu coração doeu de arrependimento quando me vi privado de sua companhia. Onde estava o som do seu sorriso?
Envolto na angústia e no ciúme da perda, corri até o campo para reaver minha linda criaturinha, mas ela não estava mais lá. Minha existência passou a ser uma constante busca. Os anos se passaram e minha alma sempre chorando a dor daquela ausência que deveria ter sido uma presença só minha.
Entretanto, após amargar as consequências das minhas escolhas, eis que a vida me promove novamente a alegria. Estava numa festa ou num evento, não me recordo. Sentado num canto, deglutindo minha solidão ferrenha, quando o cheiro de almíscar me chegou mais uma vez ao olfato. Eu jamais teria confundido um aroma, ainda mais aquele, que havia partido de mim, da minha imaginação. Virei-me vagarosamente, com cautela, passeando a vista pelas pessoas presentes.
Lá estava minha criatura. Havia crescido, estava adulto. Era belo e tinha o frescor da juventude nos lábios. Assim que me viu, o brilho dos seus olhos foi notável. Apressou-se em minha direção. Senti um frio de medo; medo de que me odiasse pelo que fiz. Mas o que fez foi me abraçar forte e ternamente e pronunciar que me amava.
Tomou-me pelas mãos tal como lhe fazia quando o trouxe ao mundo. Tirou-me daquele lugar. Seguimos caminhando de mãos dadas.
- Você esqueceu de me dar um nome...
- Me desculpe...-eu respondi debilmente.
-Você esqueceu também de me dar um sexo...
- Eu lhe queria completo, me desculpe, que egoísmo o meu... – eu estava encantado com o som da sua voz. Enquanto observava sua perfeição, contemplava minhas próprias mãos repletas de talento.
- Venha – puxou-me delicadamente – Vou lhe contar tudo o que aprendi desde que você me deixou.
- Não precisa.
- Você não quer saber? Eu gostaria que soubesse – seus olhos encheram-se de um brilho de quem quer chorar.
-Não preciso que me conte, porque quando criei você, deixei minha alma presa à sua. Eu já conheço você.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Do vermelho que chega


Há um abismo entre minha alma e a do mundo.
Enquanto ele canta, eu durmo.
Quando ele geme, eu exalto.
Mas não sou eu quando me retorce
Cospe em mim
E vem me beijar sorrindo.

é nessas horas de solidão absoluta que o vermelho entra pela sala
deita ao meu lado e se esparrama na minha cama
e se derrama na minha alma
mancha.
Pra me desmanchar
e me deixar com esse gosto de água salgada nas entranhas.
Esse gosto de não querer ser eu.