Não havia luz, não havia dia ou noite. Era tudo um grande nada. Aquele vagar sem sentido, o olhar sem vida. E a alma que ardia. Essa era a eternidade de Eurídice. Haviam dito a ela que as almas condenadas penavam no inferno, mas ela, tão jovem e tão ingênua, não dera atenção.
O mundo era escuro. Seus cabelos, muito compridos, encobriam-lhe quase o corpo todo quando se sentava nas rochas e ficava olhando o abismo que era aquele lugar. Sua alma doía tanto que ela se jogava na tentativa de morrer. Não morria mais. Não podia mais deixar de existir. Estava ali para querer morrer todos os dias que não existiam mais.
Eurídice chorava. Soluçava; o corpo todo em transe, se debatendo. Vomitava o nada que havia dentro de si. O rosto jovem e belo que fora conservado pelos deuses, na tentativa de que Orfeu se lembrasse do seu amor por ela e fosse resgatá-la. Orfeu não a amava o suficiente para atravessar o inferno? Quando ele se recordaria que sua alma penava ali à sua espera? Apenas ele, Orfeu, seria capaz de resgatar a alma de Eurídice. Era assim no mito. Orfeu a amava tanto, que, tendo-a perdido injustamente, atravessava o Mundo dos Mortos para salvá-la. Ele não a salvava, por um descuido. Mas ele a amava.
Só que o mito é o mito. Eurídice morrerra. Cortara os pulsos. Orfeu não a amava o suficiente. Ela esperava e ele não vinha. Morrera por ele e ele era seu único salvador. Ele não iria aparecer. O sofrimento dela seria eterno.
Eurídice morrera bela e jovem, depois de caminhar por um campo verde e vivo como o seu olhar. A traição de Orfeu era a dor mais pungente que seu espírito tão puro já sentira.
Ela nunca havia sentido ódio. No entanto, naquela tarde, foi o que ela sentiu. O ódio consumiu cada pedaço do seu corpo antes voluptuoso. Do ódio passou ao desprezo e enfim, chegou ao desespero. Se seu destino era estar com Orfeu e esse provava que não a amava o suficiente, sua existência estava fadada à dor. Precisava deixar de existir.
Não havia perdão para ele. A alma de Eurídice estava escura de rancor, de desprezo e raiva. No fundo, ela sabia que o mito jamais se cumpriria para ela. Ela não voltaria à vida. Ele nem tentaria, como deveria ser. Orfeu a abandonara à sua própria sorte, ou falta dela.
Pensou que talvez uma existência na escuridão fosse melhor do que aquela vida sem plenitude, porque Eurídice fora feita para o amor. Era uma bela ninfa que recebera pureza e um espírito sensível e por causa do seu espírito é que Orfeu a tinha amado. E, depois que ela viu que ele jogava fora o amor e a dedicação que lhe dera, caminhou calmamente pelos campos, colheu flores. Suas roupas brancas e leves eram como uma poesia cantada ao vento. Seus cabelos negros dançavam e a envolviam. Todos os que estavam nos campos pararam para admirar sua beleza. Porque a beleza da ninfa que caminhava não vinha da sua face rosada ou das suas pernas desnudas. Estava na alma e podia ser vista nos seus olhos.
Quem mergulhava nos olhos de Eurídice encontrava a plenitude, porque os deuses haviam-na criado com muito zelo. Mas ela não doava o prazer do seu olhar a todos. Doara a Orfeu, deu-lhe a plenitude. Mas Orfeu se esquecera disso e maculara seu amor com a traição.
Depois que Eurídice colheu as flores mais bonitas dos campos, comprou uma adaga. Era de prata. Caminhou até a beira do rio, ornamentou-se com as flores nos cabelos e nas roupas. Preparou para si um leito florido, sentou-se; cortou os pulsos vagarosamente. Não sentia dor. Não queria mais sentir nada. Então, quando ainda lhe restava o último sopro de vida, ela cravou a adaga no peito. E seu corpo jovem e fresco tombou nas flores do campo.
A última coisa que Eurídice ouviu foi um canto de lamento de Orfeu, por ter perdido a plenitude que encontrara no seio de sua amada Eurídice. Toda a natureza parou para ouvi-lo cantar, porque seu encanto contagiava a todos. Os deuses ouviram que sua música era triste e foram à Terra ver o que havia acontecido.
Orfeu saíra em busca de Eurídice, precisava pelo menos do seu perdão. Encontrou os deuses que choravam quando viram que sua criatura tão amada e feita pro amor se perdera. Estaria para sempre condenada ao sofrimento no inferno. Então, Afrodite, que não costumava ter compaixão, não permitiu que os outros deuses presentes dissessem a Orfeu que seu amor poderia salvar a alma da ninfa. E eles se foram e deixaram o músico chorar sua perda. Antes de partir, porém, as divindades prometeram conservar para sempre a beleza e o encanto de Eurídice. Nem seu corpo apodreceria nem sua alma veria a face da feiúra nas trevas em que estava.
Não fora sepultada, pois Eros, desobedecendo à sua mãe, tomara o corpo das mãos de Orfeu e o guardara numa caverna adornada de flores e fez com que as ramagens espessas bloqueassem a entrada. Apenas Orfeu conhecia o local onde repousava sua amada.
Eurídice tinha o peito sangrando quando sua alma chegou ao inferno. Estava com a face transtornada de dor. Seu espírito estava maculado pelo ódio. Entretanto, Hades atendeu ao chamado dos deuses e devolveu-lhe a beleza que lhe fora tirada pelo sofrimento. Porém, a dor lhe acompanharia para sempre. Sofreria bela e intacta.
Ela vagava pelo vazio, seus pés pequenos e descalços pelo chão frio e escuro. Sentia o tormento lhe consumindo. Fazia muitas décadas que vagava ali. Hades não permitia que lhe maltratassem, porque gostava de admirar-lhe, seu encanto o atingia e às vezes ele se achegava a ela para conversar:
- Parece que você me fará companhia para sempre, minha doce Eurídice. Meu egoísmo acha isso maravilhoso. Orfeu não vem lhe buscar.
- Meu corpo repousa. Preciso voltar.
- Minha bela, você não voltará mesmo que Orfeu venha lhe buscar. No último momento, ele vacilará, errará e sua alma ficará presa para sempre. Ele só a encontrará novamente quando ele mesmo decidir se juntar a você neste mundo escuro.
- Existe alguma possibilidade de o destino mudar?
- Existe, sempre existe, minha bela. Basta que se queira. Mas o seu não mudará. O amor de Orfeu não é como deveria ser. É fraco. Não fará com que ele chegue aqui e cante e liberte sua alma. Não permitirei nunca que lhe maltratem. Você me encantou, Eurídice. Mas não posso aliviar sua dor, minha pequena.
- Eu sinto muita dor. Eu preciso morrer. Mate-me.
- Você já está morta, minha bela criança.
E ela se levantou e se atirou no abismo novamente. Fazia isso a todo momento. Sua alma se machucava, jazia no chão escuro de nada e voltava a se levantar. Nada adiantava.
Havia passado muito tempo quando Orfeu voltou ao túmulo de Eurídice. Ainda estava intacto como Eros deixara. Mas havia uma inscrição: “Aqui jaz Eurídice, aquela que não foi salva pelo seu amor”. Então, subitamente, ele se recordou do mito. Era ele que precisava salvá-la! O espírito de Orfeu exultou de alegria, e ele cantou. Um canto magnífico e belo. O canto da salvação.
Ele chegou aos portões do inferno, passou pelo barqueiro, pelo Cérbero, por todos. Encontrou Hades e cantou. Perséfone, ao vê-lo chorar tão amargamente, intercedeu e o deus dos mortos permitiu que a ninfa retornasse à vida, sob a condição de que Orfeu não olhasse para trás enquanto ela o seguisse.
Orfeu aproximou-se da alma de Eurídice. Lágrimas de sangue nos olhos. Ela olhou-o fixamente e depois olhou para Hades. Já não se recordava de nada. Havia passado muito tempo. O sofrimento a tinha consumido. Continuava bela e jovem, mas não sentia mais nada. Ele a tomou pela mão:
- Vim salvar você.
Ela olhou para ele com um ar interrogativo, olhou para Hades como quem precisa de respostas.
- Você pode ir com ele, minha bela. – o deus lhe sorriu.
- Eu quero ficar aqui. Não sei quem é este senhor que segura minha mão. Eu sou de Hades. Eu dei minha plenitude a ele. E ele soube recebê-la.
- Aqui não é bom, meu amor. Você sofre. Seu corpo está cuidado pelos deuses. Volte comigo e seremos felizes juntos. – Orfeu insistiu.
Eurídice agarrou-se a Hades.
- Não deixem que me tirem daqui. Pelo encanto que lhe dei, me deixe ficar. Esse homem não sei quem é, mas algo me diz que é um traidor. E eu nunca fui tão solitária em nenhuma das minhas existências como agora.
E Orfeu voltou ao mundo dos vivos entoando o canto mais triste que já fora capaz de compor. Cortou os próprios pulsos e fechou os olhos, aguardando o momento de encontrar a bela Eurídice nos sofrimentos do Tártaro.