Pensava que era única na vida dele. Descobriu que ele amava a todas – e eram muitas – com o mesmo amor profundo e intenso que dava a ela. Cuidava de todas com o mesmo carinho e a cada uma tratava como se fossem únicas.
Como precisava da exclusividade pra ser feliz, foi embora numa tarde ensolarada. Não fez questão de dizer adeus – haveria muitas outras presenças na vida dele.
Noite quente. Homem triste de rosto molhado. Solidão apavorante. Nenhuma delas havia sido tão única como a que acabara de abandoná-lo.
Acordei no meio da noite e fui surpreendido por aquela mãozinha delicada que segurava a minha com tanta ternura e tanta delicadeza, que mal tive coragem de me mexer, com receio de tirá-la de perto de mim. Era pequena como a mão de uma criança, e apesar da leveza, segurava-me com força, como se tivesse um medo preso na garganta de me perder.
Meu espírito, sensível a ela, percebia os seus movimentos e cuidava para que tivesse a segurança de que necessitava. Deixava-a segurar minhas mãos e a mim inteiro, com a minha alma a saltar pela boca, para que visse que comigo não sofreria, que não havia porque se armar quando estivéssemos juntos. E ela se doava a mim, sem erguer barreiras, como não fazia a ninguém mais.
Levantei-me cedo e fiquei observando seu sono tardio. Era tão bonita que dava agonia no meu olhar. Tinha os cabelos lisos e levemente avermelhados, quase no mesmo tom rosado da sua boca pequenina. E dormia como uma deusa envolvida nos lençóis que mal lhe cobriam o corpo desnudo e branco de fêmea cristalina.
Cheguei mais perto e senti o cheiro amadeirado de seus cabelos. Ela moveu-se preguiçosamente, e eu rápido, me afastei. Não queria acordá-la. Não era justo retirar de diante de mim aquela imagem da perfeição. Notei que, mesmo dormindo, procurava minhas mãos e toquei levemente seus dedos, ao que ela agarrou-me com a fúria delicada que só ela sabia ter.
Fiquei de perto a contemplar seu semblante, sentindo muito próximo a sua respiração e o seu hálito. Toda ela estava quente, como se seu corpo ardesse em uma febre benéfica. Mexeu-se mais uma vez, espreguiçando languidamente sua carne macia. Senti um estranho desejo de conservá-la daquele jeito pra sempre. Queria guardar aquele sono plácido de ser sobrenatural repousando na minha cama eternamente.
Não suportaria mais admirar sua imagem acordada. Estava bela e plena, mergulhada em sonhos afáveis e angelicais. Toda ela lembrava um anjo. Um anjo feito de cheiros e carnes. Senti-me como o guardião de sua vida, de seu espírito, de sua plenitude. Era agora responsável pela garantia de que não deixasse de sê-lo nunca mais. Precisava conservá-la naquele estado sublime para sempre.
Afastei-me por alguns minutos sorrateiramente, sem fazer ruídos que pudessem macular seu sono. Peguei um lenço branco em uma gaveta. Deitei-me novamente junto à calidez aconchegante de sua pele, entreguei-lhe uma das minhas mãos e com a outra abafei com o lenço suas narinas e sua boca. Ela não percebeu o que lhe acontecia. Paulatinamente seu corpo foi amolecendo, cedendo à falta de ar. Quando percebi que não mais havia vida em seu semblante, ajeitei-lhe cuidadosamente sobre os lençóis brancos. Estava para sempre eternizada em sua imagem de candura libidinosa. Para sempre a deusa de cabelos vermelhos deitada a dormir em minha cama.
Fico só com meus mortos. Eles vagueiam pela minha casa pequena, mas não fazem barulho. E é isso o que mais me incomoda em sua companhia. São tao belos, com suas roupas antigas, seu ar de seriedade que só quem morreu consegue ter, mas não sabem fazer barulho. É como se nunca estivessem aqui. Se quero ouvi-los, tenho que abrir os livros e lê-los. Não são capazes de mudar ou acrescentar o que fizeram em vida.
E como eu os invoco, a fim de desfazer minha solidão ardente, eles sempre vêm. Não fazem caso, não são orgulhosos, não reclamam de nada e nada tiram do lugar. Às vezes sentam-se diante de mim e me contemplam longamente. Quando pergunto o que veem eles balançam a cabeça com ar de quem não tem o direito de falar.
- Gostaria que conversassem comigo, é pra isso que eu os chamo todas as noites – eu lhes disse.
Eles sorriram com ternura e apontaram os livros. Parece que não havia outro meio mesmo.
- Podem escrever? – eu não desistia.
Novamente me apontaram os livros.Que graça tinha ler seus livros em sua presença? Quando alguém está presente quero é ouvi-lo, sentir seu cheiro, o timbre de sua voz... Mas meus mortos, tão ilustres e tão venerados por mim nada podiam me dar além do que já haviam me oferecido. Não passavam de mortos.
Não os dispensei por isso. Davam-me sempre a ilusão de companhia. Tínhamos a cumplicidade do segredo e até mesmo do silêncio. Não aquele silêncio constrangedor e desagradável, mas aquele que une as pessoas, que gera o entendimento sem necessitar das palavras.
Um dia um deles resolveu falar comigo, mas não disse muitas palavras, talvez por saber que quebrava alguma regra.
- Por que faz tanta questão de nossa presença se não podemos saciar seus desejos? Você já tem nossos livros, nós não conversamos, não lhe damos nada além de palavras antigas. Não passamos de mortos. Por que então?
- Vocês não passam de mortos. Mas são os meus mortos.