domingo, 23 de outubro de 2011

Ironias

Um dia simplesmente descobriu que valia bem mais do que pensava. Foi um instante em que olhou para si mesma e se viu. Viu o quanto era bonita, e além disso o quanto era espirituosa, como sabia sorrir e se fazer marcante. Então, resolveu mudar. E naquela manhã, quando colocou um vestido florido e saiu para o trabalho, seu olhar era outro.
    Não olhava mais para o chão, preocupada com o cabelo que pudesse estar mal arrumado, ou se sua timidez estava sendo notada por quem passava. Olhava como se tivesse acabado de nascer e contemplasse aquele mundo pela primeira vez. Havia encanto nela. Havia uma vontade que antes não poderia ter.
    Caminhava e sentia os olhares sobre si. Havia uma beleza nova, um novo modo de se movimentar, de pisar no chão. Era uma mulher que se amava, que se via e que se queria em primeiro lugar. Havia feito uma descoberta. Descobrira que precisava se bastar. E pôs em prática. O seu motivo para viver, sorrir e ser feliz era nada mais do que ela mesma.
    Trabalhou o dia inteiro e não se sentiu derrotada pelo cansaço, porque dentro dela havia algo que lhe dizia que ela era forte, que  não precisava de nada além de si mesma para estar bem. Daquele jeito que ela era; sem precisar de retoques; sem precisar de farsa; com todas suas qualidades e defeitos.
    Então, quando chegou a noite, ela se lembrou que tinha um namorado. Era um rapaz jovem e bonito, mas que há algum tempo não lhe dava mais tanta atenção e valor. Não lhe dirigia um elogio, entretanto soubesse elogiar outras mulheres. Não lhe comprava presentes e nem lhe dizia frases carinhosas e românticas, daquelas que toda mulher gosta de ouvir. Pensando sobre tudo isso e sobre quem ela havia decidido ser a partir daquele dia, resolveu que não ligaria pra ele como fazia todas as noites, quase implorando que ele fosse lhe ver.
    Então, como um milagre irônico, naquela noite ele esperou que ela ligasse para dar-lhe uma desculpa como costumava fazer, já que sempre tinha coisas muito  mais importantes para fazer além de vê-la. Como a ligação não acontecera, foi o celular dela que tocou.
    - Você não me ligou hoje... o que houve, querida?
    - Estava ocupada.
    - Então não vai querer que nos vejamos hoje?
    - Adoraria querido, mas ainda estou ocupada. Ligo pra você outro dia. Beijos. - e desligou com sua voz mais doce.
    Foi então que o displicente namorado percebeu que já não tinha tanta importância assim, que ela não ia reclamar a falta de atenção, não ia choramingar nem fazer nada que pudesse soar como se corresse atrás dele.
    No dia seguinte, novamente a ligação dela não aconteceu. Ele começou a ficar intrigado. Detestava que ela ligasse para saber onde ele se encontrava, mas começava a pensar : por que ela não quer saber onde eu estou? E se lembrou de todas as negligências cometidas por ele. Todas as vezes que trocou sua linda namorada por alguma atividade; todas as vezes em que ela se arrumou com esmero e não recebeu um elogio dele. E tudo o que ele fazia que mostrava a ela que não era tão importante para ele. Resolveu ligar novamente:
    - E aí, querida? O que vai fazer hoje à noite?
    - Bom, eu estou na casa de uma amiga, por que, querido?
    - Estava pensando se não podíamos ir àquele restaurante que você gosta...
    - Ah, meu amor, hoje não vai dar. Se tivesse me avisado antes, quem sabe, mas estou com minha amiga hoje... Eu te ligo outro dia... um beijo, amor.
    Ele fez uma pausa muda e não desligou, começou a ofegar nitidamente:
    - Você está me traindo? É por isso que não se importa mais comigo?
    - Me desculpe, querido, mas quem tem o costume de trair é você. Ou você já esqueceu que eu tive que perdoar mais de uma vez as suas mentiras? Agora, por favor, tenha um pingo de respeito. Eu ligo pra você uma outra hora, você está incomodando. Tchau. - sua voz não era agressiva, apenas segura.
    Então, na noite seguinte, ela resolveu ligar e quando ele viu o nome dela na telinha do celular, o coração dele disparou de alegria. Enfim, sua namorada estava de volta para amá-lo acima de qualquer coisa, para vestir -se para ele e fazê-lo feliz.
    - Oi, você está ocupado, querido?
    Ele resolveu fazer-se de difícil ainda uma vez:
    - Um pouco, por quê?
    - Bom, eu gostaria de jantar com você, conversar. Poderia ser?
    E ele achou que deveria dar um pouco do veneno para ela:
    - Ah, querida, hoje estou ocupado mesmo, que pena... Eu ligo pra você outro dia. Beijo.
    Ela fez uma pausa muda e continuou na linha:
    - Não será necessário então. Eu ia sair com você para falar pessoalmente que você não me merece,mas já que você não pode sair, falo por telefone mesmo.  Um dia quem sabe nos vemos por aí. Seja feliz, heim? Um beijo grande pra você. - e desligou.
     E o negligente namorado se viu chorando por uma mulher que ele não poderia mais ter. 
   

domingo, 7 de agosto de 2011

Asas cortadas


Quando eu quiser morrer
Não quero olhos sobre mim
Quero o escuro e o esquecimento

Não quero plateia pras minhas dores
Nem compaixões que não existem
Quero a solidão

Morrer é pra morrer-se só
Com todos os olhos fechados
E as almas bem caladas.

domingo, 10 de julho de 2011

Tropeços


Com sangue nos olhos caminho, mas a alma quer sorrir; abraçar os joelhos e deixar as luzes coloridas tomarem conta do corpo.
- Sinta dor!
Eu sinto. Sinto toda a dor do mundo. A dor dos pobres,dos famintos, dos abandonados, dos aflitos.
-Esteja possuída!
Eu estou. Embriagada pela possessão de mil demônios, de vultos,de almas carniceiras, de gritos, de escuridão.
- Encontre paz.
Eu encontro. Toda a paz. A dos religiosos, a dos amantes, a dos felizes, a dos satisfeitos, dos espíritos leves.
Apagam-se as luzes.
A realidade está de volta.
- Desça do palco.

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Adaptar-se é móbido


Adaptar-se é uma forma de sobrevivência dos seres vivos. E por adaptação compreende-se as mudanças ocorridas com esses seres que se esforçam instintivamente para continuarem vivos. Podem ganhar ou perder características, de acordo com as necessidades do ambiente. Essas mudanças são graduais e perceptíveis a longo prazo. Essa adaptação de que os biólogos falam é estrutural e também possui limitações para cada espécie.
            O ser humano também é um ser adaptável. Sob o ponto de vista biológico e evolucionista também, mas o tipo de adaptação que está me interessando é um tipo que não altera as estruturas físicas de ninguém – pelo menos não diretamente. O ser humano é um ser que sobrevive porque é capaz de se adaptar às piores condições de vida.
            Por piores condições entende-se condições físicas e emocionais. Condições físicas, como a pobreza, o frio, a fome, ambientes hostis como as guerras etc; condições emocionais como a falta de afeto, a bajulação, a solidão etc.
            Pensar nessas formas de adaptação, em que nós, seres humanos, nos submetemos a situações péssimas e extremas, faz concluir que adaptar-se em vez de louvável, é mórbido. Mórbido porque em vez de lutar para que as coisas mudem, escolhemos nos adaptar e conviver com coisas nocivas, suportar dores, carregar feridas.
            Escolhe adaptar-se por exemplo, a mulher que aceita a traição ou as surras do marido. Escolhe adaprtar-se o filho que tolera as humilhações dos pais. Escolhem adaptar-se as pessoas que  aceitam relacionamentos superficiais mesmo desejando sentimentos profundos. Os empregados que são destratados pelo patrão etc.
Adaptar-se não é mais cômodo, mas talvez seja mais fácil do que lutar por mudanças. Afinal, toda luta requer energia e desgasta o lutador. É mais fácil apanhar do marido do que sair de casa e enfrentar a vida, assim como é mais fácil ser humilhado em casa do que procurar outro lugar pra viver. É mais fácil empurrar um relacionamento com a barriga, fingindo felicidade do que ficar sozinho.  E é mais fácil suportar um chefe arrogante do que ficar desempregado.
            Adaptar-se, vale ressaltar, não é tarefa sem obstáculos, como pode parecer pelo emprego da palavra “fácil” no parágrafo anterior. Quem se adapta sofre cotidianamente e esse sofrimento vai causando desgastes constantes, que a longo prazo resultarão em feridas incuráveis.
 A contradição está justamente aí: adaptar-se parece mais fácil, entretanto não é. Embora a luta requeira forças, suportar uma vida inteira de mágoas e escassez de alegria causa muito mais estragos do que enfiar a cara na vida e levar algumas porradas. Porque quando se escolhe mudar, embora venham os socos, em seguida - mesmo que isso demore – vem a mudança.
Sendo assim, adaptar-se a fim de sobreviver, dessa maneira, é mórbido e não uma forma de continuar buscando a vida, como acontece com os outros animais. Eles se adaptam para sua própria preservação, enquanto nós nos adaptamos e cultivamos nossa própria destruição. Então, fica a indagação: se adaptar-se é mais doloroso do que lutar, por que sempre optamos pela adaptação?

terça-feira, 29 de março de 2011

Passos pra trás

Grito de uma forma
                tão silenciosa
que ninguém vê
que ninguém sente
E por achar que não estava só
foi que eu corri na frente
e esperei a mão que não veio
Agora volto sozinha
Dei dez passos pra trás
Só me resta dormir
             de braços fechados.

segunda-feira, 28 de março de 2011

Desesperança de março


E é por achar estranho
que eu continuo vivendo,
Talvez mais por curiosidade,
insisto em abrir os olhos.
Ou quem sabe alguma
esperança
de que
alguma vez
em algum tempo
possa haver qualquer coisa
a mais nessa vida.

segunda-feira, 21 de março de 2011

Um poema de amor e saudade pros olhos que não são vistos


As horas que passam sem teus olhos
                                  são as horas vazias da vida
é o tempo que não se descasca
                        ante o langor e a agonia

As horas que passam sem teus olhos
       não são horas nas terras dos homens
não são risos
não são ventos
não são flores que se colhem no asfalto

São horas que não existem   - deshoras
Como um beijo quente na ponta
                                  do manto da morte
       pairando em algum lugar da imaginação
                            que desemboca
nas tardes desesperadas
      da vida pequena

e a salvação vem das páginas dos livros
                                          das rotas que se alteram
do vento absurdo batendo portas e janelas
                       numa terra sem movimento
anulando as desesperanças
e vestindo roupas lilás


sexta-feira, 18 de março de 2011

Transparente


fiquei com a saliva ácida
    de engolir mentiras
e destilar venenos
   cada dia
um mais poderoso
     cada amanhecer
uma nova amargura

aprendi a não mais esperar
   a não querer
e a deixar meus pés
    pisarem
em lugares hostis

a minha boca corrói,
mas os meus pés ficaram
   macios
e os meus olhos enxergam
o que não quero ver

nada de paz. Eu pedi a guerra
eu escolhi a solidão de pensar
numa terra de homens
   de joelhos
eu escolhi comprar minha alma
das mãos do diabo

comprei para mim apenas
e jamais deixarei que me conheçam
jamais pés estranhos pisarão no solo
 no qual habito.