quarta-feira, 27 de outubro de 2010

O deus do fogo


Trouxe a chama em uma noite nublada, junto com um cheiro bom. O silêncio era a sua palavra. Chegou manso e quente, e sabia sorrir. E foi sorrindo que entregou o fogo que nascia na sua boca. Era assim que costumava fazer. Era desse seu jeito que fazia os humanos se sentirem importantes. Era necessário que ele aparecesse na vida daquela mulher. Ela precisava ser importante também. Então bateu na porta dela numa noite sem estrelas. Bateu levemente, como uma visita agradável. E quando ela lhe abriu a porta, ele tomou-a pela mão sem dizer palavra, conduziu-a até o quarto, deitou-a na cama suavemente. Deitou-se por cima dela, com seu corpo morno de titã, e depositou nos lábios dela a chama da sua boca.

O beijo durou muito tempo, quase a noite toda, mas nenhum dos dois sentiu as horas passando, ele por ser divino, e ela por estar com ele. Havia uma quentura terna e aconchegante no quarto. Ela não percebeu que já estava mergulhada em êxtases orgásticos quando o dia amanheceu. Havia encontrado a plenitude e fechou os olhos.

Quando tornou a abri-los o cheiro ainda estava no quarto. E sentia uma imensa vontade de viver, mas o deus do fogo havia ido embora. Plantou nela aquele calor e a deixou. Esperou que retornasse na noite seguinte. Em vão.  Então, chorou amargamente aquela vontade de viver que ele deixara nela, aquela sensação de ser importante que ele lhe deu e lhe tirou quando não trouxe de volta seus olhos fulgurantes.

Não sabia o que fazer com todo aquele ardor que ele lhe dera de presente. Precisava viver, mas só queria viver com aquele deus que lhe invadiu a alma. E as noites passavam e ficavam cada vez mais frias, cada vez mais sem ele. Ela acendia velas por toda a casa, como num ritual de chamamento. E ele, como divindade que se preza, não lhe dava atenção.

Ela enlouquecia ao imaginar que ele passava as noites com mulheres iguais a ela. Pensava que, assim como batera em sua porta para entregar a chama, era como fazia todas as noites com as mulheres espalhadas pelo mundo. E seu espírito ardia de ciúmes, ela se debatia na cama, apagava as velas, para logo em seguida tornar a acendê-las. Tinha medo de que ele nunca mais voltasse.

Gritava. Chamava-o pela casa, da janela. Se ele era divino, lhe ouviria. E se lhe ouvia, não voltava porque não queria. O peito dela se enchia de angústia a cada dia. Ela começava a maldizê-lo e até a descrer em sua existência. Tudo o que desejava era um pouco mais daquela sensação que ele lhe proporcionara ao lhe entregar a chama e ele, deus egoísta, não realizava o seu desejo.

Decidiu esquecê-lo para sempre. Apagou todas as velas, molhou os fósforos. Arrumou um namorado. Deixou de crer em deuses.

E o deus do fogo, do telhado da casa dela, assistia a tudo sem mencionar palavra com seus olhos vermelhos. Estivera ali o tempo inteiro, mas não voltara, porque tinha medo, afinal, era a primeira vez que se apaixonava por uma humana. Tantas vezes tinha entregado a chama que não pensara que seria derrotado por uma única mulher.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

O deus que há em mim


Eu também gosto de inventar.  Mas não são inventos convencionais os meus, como quem inventa um carro, um utensílio doméstico, uma roupa ou um acessório qualquer. Eu tenho um péssimo hábito de inventar pessoas. Às vezes invento coisas, que são mais fáceis de formular. Porém, uma ou duas vezes na vida, gosto de inventar pessoas.
Elas não nascem como todo mundo nasce, sem saber de nada, precisando dos outros e de tudo para aprender a viver. Os que nascem das minhas mãos, já nascem prontos e acabados. Sabem do que gostam, do que não gostam e o que são. Não se enrolam em divagações desnecessárias. Não precisam disso, nasceram como devem ser e sua função é apenas existir.
Só que nem sempre eu acerto. Minhas mãos são meio trêmulas, às vezes faço besteiras. Então, como um deus justo consigo mesmo, desfaço os nascimentos. Desmancho-os, e isso é tudo. Deixam de existir. Não exibo minha criação medíocre.
No entanto, às vezes acontecem surpresas boas na nossa vida. Numa tarde dessas, das mais quentes, daquelas em que a preguiça impera e a única vontade é não ter vontade, saiu de minhas mãos um ser. Perfeito? Talvez não , por ser demasiado humano. Ele nasceu diferente, não saiu pronto e acabado. E eu podia ver claramente as cores da sua alma. Algo em mim me dizia que iria embora em breve, porque eu via a liberdade nos seus olhos.
Observando seus gestos mansos, sua sagacidade encantadora, convenci-me de que precisava deixá-lo viver. E ser livre. Por isso não me apoderei dele, fiz melhor: desfiz-me dele. Tomei-o pela mão quando ainda era uma criança e o abandonei num campo de flores.
- Quero que você aprenda a ser feliz. –eu lhe disse com lágrimas nos olhos. Não era fácil separar-me de minha criação, mas eu não queria ser egoísta. O mundo deveria conhecer aquela criatura admirável.
Ele me olhou com aqueles olhos cheios de ternura que lhe dei, sorriu de um jeito angelical e saiu correndo, como se me compreendesse perfeitamente. Meu coração doeu de arrependimento quando me vi privado de sua companhia. Onde estava o som do seu sorriso?
Envolto na angústia e no ciúme da perda, corri até o campo para reaver minha linda criaturinha, mas ela não estava mais lá. Minha existência passou a ser uma constante busca. Os anos se passaram e minha alma sempre chorando a dor daquela ausência que deveria ter sido uma presença só minha.
Entretanto, após amargar as consequências das minhas escolhas, eis que a vida me promove novamente a alegria. Estava numa festa ou num evento, não me recordo. Sentado num canto, deglutindo minha solidão ferrenha, quando o cheiro de almíscar me chegou mais uma vez ao olfato. Eu jamais teria confundido um aroma, ainda mais aquele, que havia partido de mim, da minha imaginação. Virei-me vagarosamente, com cautela, passeando a vista pelas pessoas presentes.
Lá estava minha criatura. Havia crescido, estava adulto. Era belo e tinha o frescor da juventude nos lábios. Assim que me viu, o brilho dos seus olhos foi notável. Apressou-se em minha direção. Senti um frio de medo; medo de que me odiasse pelo que fiz. Mas o que fez foi me abraçar forte e ternamente e pronunciar que me amava.
Tomou-me pelas mãos tal como lhe fazia quando o trouxe ao mundo. Tirou-me daquele lugar. Seguimos caminhando de mãos dadas.
- Você esqueceu de me dar um nome...
- Me desculpe...-eu respondi debilmente.
-Você esqueceu também de me dar um sexo...
- Eu lhe queria completo, me desculpe, que egoísmo o meu... – eu estava encantado com o som da sua voz. Enquanto observava sua perfeição, contemplava minhas próprias mãos repletas de talento.
- Venha – puxou-me delicadamente – Vou lhe contar tudo o que aprendi desde que você me deixou.
- Não precisa.
- Você não quer saber? Eu gostaria que soubesse – seus olhos encheram-se de um brilho de quem quer chorar.
-Não preciso que me conte, porque quando criei você, deixei minha alma presa à sua. Eu já conheço você.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Do vermelho que chega


Há um abismo entre minha alma e a do mundo.
Enquanto ele canta, eu durmo.
Quando ele geme, eu exalto.
Mas não sou eu quando me retorce
Cospe em mim
E vem me beijar sorrindo.

é nessas horas de solidão absoluta que o vermelho entra pela sala
deita ao meu lado e se esparrama na minha cama
e se derrama na minha alma
mancha.
Pra me desmanchar
e me deixar com esse gosto de água salgada nas entranhas.
Esse gosto de não querer ser eu.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

...


Deixe-me só com meus papéis, é só o que quero. Chega de almas pequenas, de palavras gastas. Chega desse nada que há dentro de você e que eu gostaria de tocar. É só isso o que me rodeia, então, deixe-me aqui, não me force a falar. Não me force a sorrir ou a ser carinhosa. Eu não sou assim.

Não me importo se há vestidos bonitos esperando por belos corpos. Eu me visto de mim. E me basta. Mas se você se importa, deixe-me aqui com meus papéis, com meu jeito esquisito de quem ri de tudo sem nem estar querendo rir. Rio pra fingir que sou leve. Pra não mostrar as rugas do meu peito. Os quatrocentos anos que carrego nas costas.

Mas vamos rir mesmo de vez em quando. Vamos rir muito, como eu gosto, rir pra fora e não pra dentro como tenho feito quando não me compreendem. E também vamos não rir nunca. De repente, é tudo tão trágico. E você sempre esse nada.  Que perambula espalhando beleza pelas ruas. E eu aqui, a pensar, a pensar, com meus papéis.

E me ocorrem dúvidas sobre a acentuação das palavras. E é como se isso fosse o fim do mundo. Mas aí vejo novamente que nem importa. Aliás, importa. Mas não é o fim do mundo.  E volto a viver.

Que bom que me deixou aqui com meus papéis. Essa solidão de quem escreve é pura. Dói, mas acalma.  Faz vibrar alguma coisa que faz vibrar tudo. Quase como um orgasmo. Não qualquer deles. Intenso. Demorado. Como só quem faz sexo bem devagar pode saber como é. É  bom se sentir de vez em quando.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Feitiço


Quando fui me deitar
                        Em meio às minhas noites de calafrios solitários
   Encontrei teu cheiro  
          Levemente perdido
                        Por entre meus lençóis amarrotados
E me lembrei que há muito
                 Ninguém vê meus olhos
E que há tempos nada peço a ninguém
Pediria a ti, a teus lábios, às tuas mãos
                       No entanto
Não te encontro
                                        Só te vejo no teu cheiro lilás
     Que tu por descuido ou desleixo
   Acabaste por esquecer em mim

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Adormecido

                      Feito de fogo
pergunta e ressona
             adormecido como um deus
                        a sonhar com seus divinos pensamentos.
         Nada lhe chega
                          Principalmente
                                          o meu grito surdo
                   ele a si mesmo pertence
 não divaga
                   não chora
                              e também não ama:
não merece despertar.

Por isso lhe nego
a mim
                a tudo que é meu

Todas as minhas preces
são para outro deus.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Segue sozinha

Tua mão segue sozinha. Já não tem o calor que a minha oferece. Quebraste tua promessa primeiro. Eu te acompanhei, pra cumprir as minhas palavras que nunca foram em vão. Soltaste-me primeiro. Eu te segui. Soltei-te quando te vi longe. E fui mais além. Empurrei-te: Some-te daqui; some-te de mim. Já não há vínculos entre nós – meros desconhecidos que se conhecem profundamente.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Horas Gastas

Horas gastas

Eu escrevo palavras minhas
Sem retorno e sem paz
pra chegar aos teus olhos cinzas
que não são meus.

Eu me exponho no papel
Pra saciar a distância encardida
Que há no meu peito.
Pra me gritar
Nessas madrugadas silenciosas de grilos.

Porque a solidão me espreita
com seus olhos azuis
de quem também não tem par
e a ela me agarro com os dentes.

Minhas palavras pairam no ar
Sem ouvidos.
Sem olhos.

Necessitam de uma reencarnação.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Tempo


Eu vi as horas passando
               uma a uma
nenhuma era minha
nada era meu
       além daquela insubstituível
ausência no espírito

sexta-feira, 25 de junho de 2010

Desemparelhados

Pensava que era única na vida dele. Descobriu que ele amava a todas – e eram muitas – com o mesmo amor profundo e intenso que dava a ela. Cuidava de todas com o mesmo carinho e a cada uma tratava como se fossem únicas.
Como precisava da exclusividade pra ser feliz, foi embora numa tarde ensolarada. Não fez questão de dizer adeus – haveria muitas outras presenças na vida dele.
Noite quente. Homem triste de rosto molhado. Solidão apavorante. Nenhuma delas havia sido tão única como a que acabara de abandoná-lo.

Cabelos Vermelhos


Acordei no meio da noite e fui surpreendido por aquela mãozinha delicada que segurava a minha com tanta ternura e tanta delicadeza, que mal tive coragem de me mexer, com receio de tirá-la de perto de mim. Era pequena como a mão de uma criança, e apesar da leveza, segurava-me com força, como se tivesse um medo preso na garganta de me perder.
Meu espírito, sensível a ela, percebia os seus movimentos e cuidava para que tivesse a segurança de que necessitava. Deixava-a segurar minhas mãos e a mim inteiro, com a minha alma a saltar pela boca, para que visse que comigo não sofreria, que não havia porque se armar quando estivéssemos juntos. E ela se doava a mim, sem erguer barreiras, como não fazia a ninguém mais.
Levantei-me cedo e fiquei observando seu sono tardio. Era tão bonita que dava agonia no meu olhar. Tinha os cabelos lisos e levemente avermelhados, quase no mesmo tom rosado da sua boca pequenina.  E dormia como uma deusa envolvida nos lençóis que mal lhe cobriam o corpo desnudo e branco de fêmea cristalina.
Cheguei mais perto e senti o cheiro amadeirado de seus cabelos. Ela moveu-se preguiçosamente, e eu rápido, me afastei. Não queria acordá-la. Não era justo retirar de diante de mim aquela imagem da perfeição. Notei que, mesmo dormindo, procurava minhas mãos e toquei levemente seus dedos, ao que ela agarrou-me com a fúria delicada que só ela sabia ter.
Fiquei de perto a contemplar seu semblante, sentindo muito próximo a sua respiração e o seu hálito. Toda ela estava quente, como se seu corpo ardesse em uma febre benéfica.  Mexeu-se mais uma vez, espreguiçando languidamente sua carne macia. Senti um estranho desejo de conservá-la daquele jeito pra sempre. Queria guardar aquele sono plácido de ser sobrenatural repousando na minha cama eternamente.
Não suportaria mais admirar sua imagem acordada. Estava bela e plena, mergulhada em sonhos afáveis e angelicais. Toda ela lembrava um anjo. Um anjo feito de cheiros e carnes. Senti-me como o guardião de sua vida, de seu espírito, de sua plenitude. Era agora responsável pela garantia de que não deixasse de sê-lo nunca mais. Precisava conservá-la naquele estado sublime para sempre.
Afastei-me por alguns minutos sorrateiramente, sem fazer ruídos que pudessem macular seu sono. Peguei um lenço branco em uma gaveta. Deitei-me novamente junto à calidez aconchegante de sua pele, entreguei-lhe uma das minhas mãos e com a outra abafei com o lenço suas narinas e sua boca. Ela não percebeu o que lhe acontecia. Paulatinamente seu corpo foi amolecendo, cedendo à falta de ar. Quando percebi que não mais havia vida em seu semblante, ajeitei-lhe cuidadosamente sobre os lençóis brancos. Estava para sempre eternizada em sua imagem de candura libidinosa. Para sempre a deusa de cabelos vermelhos deitada a dormir em minha cama.

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Meus Mortos

Fico só com meus mortos. Eles vagueiam pela minha casa pequena, mas não fazem barulho. E é isso o que mais me incomoda em sua companhia. São tao belos, com suas roupas antigas, seu ar de seriedade que só quem morreu consegue ter, mas não sabem fazer barulho. É como se nunca estivessem aqui. Se quero ouvi-los, tenho que abrir os livros e lê-los. Não são capazes de mudar ou acrescentar o que fizeram em vida.
E como eu os invoco, a fim de desfazer minha solidão ardente, eles sempre vêm. Não fazem caso, não são orgulhosos, não reclamam de nada e nada tiram do lugar. Às vezes sentam-se diante de mim e me contemplam longamente. Quando pergunto o que veem eles balançam a cabeça com ar de quem não tem o direito de falar.
- Gostaria que conversassem comigo, é pra isso que eu os chamo todas as noites – eu lhes disse.
Eles sorriram com ternura e apontaram os livros. Parece que não havia outro meio mesmo.
- Podem escrever? – eu não desistia.
Novamente me apontaram os livros.Que graça tinha ler seus livros em sua presença? Quando alguém está presente quero é ouvi-lo, sentir seu cheiro, o timbre de sua voz... Mas meus mortos, tão ilustres e tão venerados por mim nada podiam me dar além do que já haviam me oferecido. Não passavam de mortos.
Não os dispensei por isso. Davam-me sempre a ilusão de companhia. Tínhamos a cumplicidade do segredo e até mesmo do silêncio. Não aquele silêncio constrangedor e desagradável, mas aquele que une as pessoas, que gera o entendimento sem necessitar das palavras.
Um dia um deles resolveu falar comigo, mas não disse muitas palavras, talvez por saber que quebrava alguma regra.
- Por que faz tanta questão de nossa presença se não podemos saciar seus desejos? Você já tem nossos livros, nós não conversamos, não lhe damos nada além de palavras antigas. Não passamos de mortos. Por que então?
- Vocês não passam de mortos. Mas são os meus mortos.

terça-feira, 8 de junho de 2010

Canção da alma roubada



Tuas mãos me acharam
Numa tarde quente e suada.
Meus dedos disseram sim
e minha alma, tão minha,
foi-se com teus olhos de pássaro pequeno.

Pedi que me trouxesse de volta
Queria voltar a me pertencer
me ter comigo e só pra mim
mas lá estavas tu
a exibir meu coração nos teus sorrisos,
nos teus encantamentos que são só teus.

Desde então vivo sem paz,
habitando um corpo vazio:
minh’alma pra sempre contigo,
passeando pelas profundezas de ti.

quinta-feira, 25 de março de 2010

tarde quente

enquanto a tarde quente se arrasta,
eu descasco a poesia que me resta
e dou chutes no tempo
para espantar a solidão que me engole

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Lua manchada de sangue




Carregava nos olhos um ar de tristeza, mas na verdade o que sentia era solidão. Nascera sozinha e solitária continuava vagando pela Terra por mais de uma eternidade. E a beleza das coisas tristes e suaves acompanhava seus gestos. Sua caminhada era lenta e longa, porém incansável. Havia no seu sorriso uma doçura incomparável, e ao mesmo tempo, a crueldade pairava no seu olhar frio. Seu espírito estava muito bem guardado nas profundezas inacessíveis do seu interior, mas a força que emanava dele gerava nela uma energia que atraía outros espíritos. Ela era feita de carne, magia e solidão.
            Era essa solidão densa que fazia com que ela vagasse sem parar pelo mundo e suas eras. Gostava de passear pelas florestas à noite, desprovida de roupas, com os longos cabelos a lhe cobrir o corpo. Não mostrava os cabelos para ninguém. Prendia-os bem junto à cabeça em tranças enroladas elegantemente, de modo que ninguém poderia conhecer seu verdadeiro comprimento. Por vezes usava também lenços coloridos para encobri-lo.
            Mas quando a noite tomava a terra, ela se aproximava das florestas, e, certa de estar só, pedia licença e adentrava a densidade verde escuro e negra, com o corpo nu e os cabelos muito compridos soltos. E, livre, corria graciosamente até o amanhecer, relembrando a bela guerreira que na verdade era. Às vezes seu refúgio eram as praias desertas. Entregava-se nua ao mar e à luz da lua, sentindo na sua pele as eras guardadas nas águas salgadas e nas rochas.
            Seu nome era impronunciável, por isso escolhera chamar-se Eveline, para apresentar-se ao mundo. E com esse nome atravessava as eternidades, vencendo os homens e a Morte. Do muito que vivera, apenas a solidão inquebrantável lhe pesava na alma. Não ficara nomes, não ficara amigos, tampouco amores; apenas aquele vazio que ela sabia que não seria nunca saciado, e por isso, ela cumpria sua missão e se satisfazia em existir até o dia em que lhe seria concedido o descanso.
            Eveline tivera um único amor em toda a sua longa vida de anos arrastados por suas pernas fortes. E isso fora há muitas eras distantes, na época em que a Lua descia à terra para enfeitiçar os homens com seu brilho. Ela os levava consigo, para que a amassem absolutamente até o dia de suas mortes. Os homens que se apaixonavam por ela e se deixavam levar, amavam-na por uma noite inteira e adormeciam para sempre quando o sol nascia e a escuridão da noite terminava.
            Eveline era feliz com Áquis, até o dia em que ele escreveu versos para a Lua, que desceu à terra e encheu os olhos dele com o brilho magistral do seu olhar. Ele se apaixonou por aquela mulher branca de cabelos negros e, embora Eveline se esforçasse por recuperar seu amor, dando-lhe atenção e toda a sua beleza, ele preferia o amor da Lua, porque ela possuía o olhar de mil belas mulheres. Quando ela lhe convidou para que fosse somente dela, ele deu-lhe a mão e não foi mais visto na Terra.
            A Lua gostava de testar a fidelidade dos homens e por esse motivo escolhia homens que viviam felizes com suas mulheres. E, quando estes sucumbiam ao desejo e à traição, ela os deixava morrer.
            Na manhã seguinte, quando o corpo de Áquis surgiu sem vida na areia de uma praia, o peito de Eveline parou de sangrar. Suas vestes brancas, diáfanas, estavam completamente vermelhas, manchadas pelo seu sangue que escorreu da ferida de sua alma durante toda a noite em que seu amado estivera com outra mulher.
            Ela levantou-se de sua prostração e começou a vagar pelo mundo. Seus pés não se cansavam nem se feriam e sua beleza não arrefecia. No lugar da sua alma fluida como um rio puro, brotou uma árvore de raízes profundas e ressecadas.
            Houve muitos homens que se apaixonaram por Eveline. Ela permitia que se aproximassem, sondava-lhes a alma e se fossem bem intencionados, se existisse pureza nos seus sentimentos, ela se afastava deles. Nunca se aproximava de mulheres, ainda que possuíssem boa índole.
            Certa vez estava passando por uma cidade e saiu à procura de algum lugar deserto para poder caminhar livremente. Disseram-lhe que havia uma ilha onde morava apenas uma senhora e seus cachorros. Eveline pagou um barqueiro e desembarcou no lugar para passar a noite. Assim que chegou, avistou uma casinha de madeira e os cachorros logo foram recebê-la. Era fim de tarde ainda.
            A senhora saiu à porta para ver o que alvoroçava os cachorros. Era uma negra gorda, com os anos um tanto avançados, mas se movimentava com agilidade.
            - Boa tarde! – disse Eveline – Não quero atrapalhar, só vim à procura de um lugar ermo para passar a noite. A senhora mora aqui sozinha?
            - É isso mesmo, minha filha. Essa ilha é minha, eu a comprei há muito tempo. E estou aqui cumprindo meu destino. Minha casa está aberta para os visitantes da ilha. Não tem luxo nem conforto, mas serve para passar a noite, se for preciso. Queira entrar.
            Eveline aceitou o convite. A casa possuía apenas um cômodo e um balcão servia para improvisar uma pequena cozinha. Havia redes armadas e mesas com cadeiras. A senhora lhe ofereceu água de coco e acendeu um incenso:
            - Se incomoda se eu acender?
            - Não, fique à vontade, eu gosto. Me faz pensar em coisas boas.
            A moça olhou em volta e percebeu vários frascos com folhas secas e líquidos coloridos. A velha, seguindo seu olhar curioso, cuidou em explicar:
            - Eu gosto de cultivar ervas. Essas ali são medicinais. Você tem algum mal que queira curar? Talvez eu possa ajudar...
            - Não, senhora. Os meus males não estão no corpo.
            - Eu entendo, minha filha. Mas por onde você andava esse tempo todo? Eu lhe espero há tanto tempo!
            Eveline arregalou os olhos repleta de surpresa e estranhamento:
            - A senhora deve estar me confundindo, eu nunca estive aqui antes.
            - Não, minha querida, você é que está enganada. Agora, não quero lhe prender mais. Eu sei que precisa sair e soltar esses lindos cabelos. Devem estar chegando aos seus pés! Como eu gostaria de poder vê-los! Mas não se preocupe, a ilha é segura para você e eu não vou espioná-la, não ganharia nada com isso.
            Eveline pôs imediatamente a mão nos cabelos, num gesto instintivo de proteção.
            - Quem é você? – seu olhar era assustador.
            - Não se amedronte por minha causa. Estou falando porque você veio até mim. Não havia realmente necessidade, mas eu já imaginava que você apareceria. Só não sabia que demoraria tanto. Quase você não me encontrava mais pela Terra, menina! Mas eu vou lhe dizer a verdade. Você só não será feliz se não quiser, pois essa sua caçada macabra irá terminar em breve e você estará livre. E poderá ser feliz de novo!
            - O que me entristece não é o que faço. Não me importo de ter me tornado uma caçadora. Eu preferia caçar outros tipos de alma, mas meu destino foi ficar com a parte podre. Cumpro-o resignada até o dia que tudo chegar ao fim. Mas, me diga, quando a caçada acabar, vou me alimentar de quê?
            - Isso não sei lhe dizer. Algumas coisas não são reveladas.
            - Como sabe de tudo isso?
            - Vi nas águas do mar. A nossa vida é muito irônica, minha filha. Há milênios o meu destino também foi revelado a alguém que eu não conhecia e que eu demorei muito para encontrar.
            - O que você caça?
            - Eu caço os males do corpo. Não sou tão poderosa como você. As pessoas aqui me chamam Curandeira e acham que eu as curo através das ervas medicinais. O que pensam de você?
            - Não sei. Nunca estive muito tempo em um lugar para conhecer os pensamentos das pessoas. Sou caçadora e fugitiva. A vingança é minha irmã, e eu mando na Morte.
            A noite caía densa e escura, com a lua e as estrelas como luzes. Eveline olhou para fora e a velha compreendeu que estava na hora de deixá-la ir.
            - A lua já está luzindo. Eu preciso ir.
            - Se algum dia puder, volte para me ver.
            Eveline saiu correndo, o rosto a contemplar a lua. Quando já estava longe o suficiente, tirou o vestido branco e soltou os cabelos, que lhe chegavam aos pés em ondas negras.   
            Quando aquela noite se findou, ela retornou à cidade e continuou a sua vida normalmente. Ainda vagou por muito tempo até encontrar aquilo que transformaria sua existência. Era madrugada e ela saía da casa de um homem casado cuja mulher estava viajando. Conhecera-o num bar e ele a convidou para passarem a noite juntos. Eveline aceitou, sondou sua alma e viu que não havia fidelidade em seus sentimentos. Ficou com ele até o início da madrugada. Quando saía da casa, seu vestido sempre branco, estava completamente vermelho. Ela limpava o sangue da boca quando um homem a avistou e lhe parou para perguntar se ela estava bem.
            - Estou sim, obrigada. Só preciso pegar um táxi.
            - Eu posso lhe dar uma carona, me diga onde você mora.
            Eveline pensou que caçar dois homens numa única noite poderia ser cansativo, mas resolveu entrar no carro, e, para sua surpresa, descobriu que o espírito dele era puro.
            Quando o dia amanheceu estava nos jornais a notícia de que um homem fora encontrado morto em casa, amarrado à própria cama e seu coração havia sido retirado. Sua mulher chegara de viagem repentinamente e o encontrara naquele estado tenebroso. Não havia digitais nem vestígio algum de seu assassino.
            Eveline vagava novamente pelas ruas quando o homem que conhecera na noite anterior lhe abordou:
            - Que coincidência nos encontrar de novo!
            Ela achou estranho, porque desconfiava de coincidências.
            - Você aceita tomar alguma coisa comigo? –ele perguntou educadamente.
            Ela sentiu vontade de ir com ele, porém, lembrou-se de que havia uma missão a cumprir e aquele homem não lhe ajudaria com isso. Dispensou-o educada e amavelmente. No entanto, as coincidências começaram a se repetir e ela o encontrava com muita frequência. E numa noite, ela resolveu abdicar da missão para jantar com ele.
            Tiveram uma noite agradável e quando amanheceu, ela não sentiu as dores no peito que costumava sentir quando não cumpria sua missão. E assim, quando as noites  chegavam, ela desistia da sua caçada para ficar com aquele homem que lhe mostrava amor através dos olhos. O mais estranho era que as dores não vinham ao amanhecer e ela não sentia mais necessidade de caçar.
            Foi então que se lembrou da Curandeira e percebeu que sua missão havia acabado. Estava livre e poderia amar novamente. E aquele era o homem que estava destinado para ela, para que voltasse a ser feliz e enxugasse o sangue da sua ferida aberta por tantos anos. E agora nem que ele avistasse duas luas cheias no céu ela o perderia, porque lavara com o sangue de corações ruins o próprio passado. Era aquele o homem que finalmente poderia conhecer o comprimento dos seus cabelos e assim conhecer seus espírito e apoderar-se dele.
            Sabia que o havia encontrado e passou a dedicar-se ao cultivo daquele amor, para que nunca mais fosse infeliz e solitária. Nunca mais precisaria caçar. Aguardava o dia em que poderia lhe revelar seus segredos. A única dúvida que ainda pairava sobre sua mente era sobre a sua fome, já que, deixando de caçar, não se alimentaria mais como antes. Não sabia o que usaria para se saciar quando a necessidade falasse dentro de si.
            Estavam no quarto dele. Eveline olhou-o nos olhos:
            - Preciso lhe mostrar algo. É muito importante.
            Ela se afastou dele, despiu o vestido branco e lentamente soltou as mechas dos cabelos compridos. Ele olhou-a espantado com a plenitude da sua beleza e o espírito dela, num segundo, tornou-se transparente e visível para ele, era como se pudesse tocá-lo, de tão intensa que era a sensação. Perplexo com a verdade, por algum tempo não conseguiu falar, até que as palavras retornaram aos seus lábios:
            - Você me ama, mas...
            - Sim, é isso mesmo. Eu amo você, mas eu me alimento dos corações dos homens infiéis. Foi isso o que eu fiz a minha existência inteira, depois que meu peito sangrou com a dor da traição. Sou uma caçadora, Mateus. Mas você me libertou. Agora conhece meu espírito e me tem para sempre. Você quer que eu lhe pertença agora que me conhece completamente?
            - Sim, eu quero. O seu verdadeiro nome... – ele estava como se estivesse dopado – não consigo falar... E sei tudo o que você já viveu! Vejo cada coração que arrancou dos peitos de homens e comeu! É tudo absurdamente real!
            Então, venha comigo. Preciso falar com alguém que me ajude a responder algumas perguntas.
            Ela lhe tomou pela mão e eles viajaram por alguns dias até chegar à ilha da Curandeira.
            - Só ela pode me dizer do que devo me alimentar! Não posso errar, ou meu descanso chegará em breve. E não posso perder você para a Morte!
            Quando chegaram à casinha de madeira não havia ninguém além dos cachorros. Eveline entristeceu-se subitamente, quase perdendo as esperanças de viver por mais tempo. No entanto, havia uma tábua sobre o balcão com algumas palavras riscadas: “Eu disse que partiria em breve. Mas novamente eu sabia que você viria. Deixei duas garrafas, uma é para você e a outra para ele, para que ambos não precisem mais se alimentar. Esta ilha agora é de você, cuidem dela e sejam felizes. Você não é mais uma caçadora da vingança, mas nunca deixará de ser uma guerreira. Enviarei presentes para vocês, quando chegarem”.
            Dois cavalos surgiram galopando e pararam à entrada da casinha. Eveline compreendeu que seus tempos ancestrais estavam de volta. Aquela ilha seria apenas deles dois, para sempre. Despiu as próprias roupas e montou um cavalo. Mateus fez o mesmo e a seguiu. Diz a lenda que em noite de lua cheia, o espírito de uma mulher de cabelos compridos dá a volta na ilha, nua em seu cavalo, para encontrar-se com seu amado.  E que nem mesmo a beleza de sete luas poderia separá-los.